sábado, 26 de abril de 2014

O MÚSICO por Étienne Souriau


 
 
"O músico está sentado à mesa, num quarto silencioso _ em geral à noite, quando se calaram os ruídos externos. Ele se volta manifestamente para as coisas interiores. Nele se acham todos os sinais do labor intelectual. De vez em quando, vai para o piano, verifica alguns acordes, depois retorna à mesa onde está escrevendo. Fora de casa, nós, muitas vezes, ancontramo-lo absorvido em si mesmo e levando pranchetas nas quais registra de passagem, alguma ideia.


Encontramo-lo também, coisa estranha, nas salas barulhentas _ pois de todo esse silêncio jorram os sons que ele trazia na alma _, salas onde se reúnem muitos homens, uns para ouvir e fruir, outros para se entregarem a trabalhos manuais. Destes, uns cortam visceras de carneiro, fazem-na roncar como um volante de fábricar ou sussurrar como a asa de um pernilongo; outros fazem tubos gemerem e suspirarem. Ele próprio, com uma vareta na mão, dirige a equipe desses trabalhadores cuja tarefa é dar uma espécie de corporeidade transitória, uma presença sensível e lábil as ideias de suas vigílias...


Assim, a obra, ora reside em sua alma à maneira de um sonho, ora realiza-se em vibrações organizadas, abalando a atmosfera da sala; depois se esvanece a cochila na grafia embalsamada das partituras para ressuscitar de novo nos aposentos em que canta um piano, nas salas de concerto, nos estúdios que emitem ondas, segundo uma espécie de cerimônia teofânica de que o músico se limitou a escrever o ritual."

 
( Étienne Souriau, 1892)

sábado, 19 de abril de 2014

Escândalo e Literatura (...o caso do dinheiro na cueca)



Um haicai:
 
       "Cueca e dinheiro,
        o outono da ideologia
        do vil companheiro."


 À moda Machado de Assis:


    "Foi petista por 25 anos e 100 mil dólares  na cueca"


À moda Dalton Trevisan: 


    "PT. Cem mil. Cueca. Acabou."


À moda concretista:


        "PT


       cueca


         cu


         PT


        eca


      peteca


         te


       peca


      cloaca".



À moda Graciliano Ramos:


      "Parecia padecer de um desconforto moral. Eram os dólares a lhe pressionar os testículos".


À moda Rimbaud:


    "Prendi os dólares na cueca, e vinte e cinco anos de rutilantes empulhações cegaram-me os olhos, mas não o raio-x"


À moda Álvaro de Campos:


        "Os dólares estão em mim já não me sou mesmo sendo o que estava destinado a ser nunca fui senão isto: um estelionato moral na cuca das ideias vãs"


À moda Drummond:


    "Tinha um raio-x no meio do caminho, e agora José?"
      


À moda Proust:


    "Acabrunhado com todas aquelas denúncias e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como os últimos, juntei os dólares elevei-os à cueca. Mas no mesmo instante em que aquelas cédulas tocaram aminha pele, estremeci, atento ao que se passava  de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferente às vicissitudes da vida, inofensivos seus desastres, ilusória sua brevidade, tal como o fazem a ideologia e o poder, enchendo-me de uma preciosa essência."


À moda TS Eliot:


    "Que dólares são estes que se agarram a esta imundície pelancosa? Filhos da mãe! Não podem dizer! Nem mesmo estimam O mal porque conhecem não mais do que um tanto de ideias fraturadas,
   batidas pelo tempo. E as verdades mortas já não mais os abrigam nem consolam."


À moda Lispector:

    "Guardei os dólares na cueca e senti o prazer terrível da traição. Não a traição aos meus pares, que estávamos juntos, mas a séculos de uma crença que eu sempre soube estúpida, embora apaixonante. Sentia-me ao mesmo tempo santo e vagabundo, mártir de uma causa e seu mais sujo servidor, nota a nota".


À moda Lênin:


    "Não escondemos dólares na cueca, antes afrontamos os fariseus da social-democracia. Recorrer aos métodos que a hipocrisia burguesa criminaliza não é, pois, crime, mas ato de resistência e fratura revolucionária. Não há bandidos quando é a ordem burguesa que está sendo derribada. Robespierre não cortava cabeças, mas irrigava futuros com o sangue da reação. Assim faremos nós: o dólar na cueca é uma arma que temos contra os inimigos do povo. Não usá-la é fazer o jogo dos que querem deter a revolução. Usá-la é dever indeclinável de todo revolucionário."


À moda Stálin:

    "Guarda a grana e passa fogo na cambada!"


À moda Gilberto GIl:

     " Se a cueca  fosse verde como as notas, teríamos resgatado o sentido de brasilidade impregnado nas cores diáfanas de nosso pendão, numa sinergia caótica com o mundo das tecnologias e dos raios que, diferentemente dos da baianidade, não são de sol nem das luzes dos orixás, mas de um aparelho apenas, aleatoriamente colocado ali, naquele momento, conformando uma quase coincidência entre a cultura do levar e trazer numerário, tão nacional, tão brasileira quanto um poema de Torquato"


À moda Ferreira Gullar

    "Sujo, sujo, não como o poema
    mas como os homens em seus desvios"


À moda Paulinho da Viola


     "Dinheiro na cueca é vendaval"


À moda Camões


    "Eis pois, a nau ancorada no porto
    à espreita dos que virão d'além
    na cobiça da distante terra,
    trazendo seus pertences, embarcam
    minh'alma se aflige
    tão cedo desta vida descontente"


À moda Guimarães Rosa:

    "Notudo. Ficado ficou. Era apenas a vereda errada dentre as várias."


À moda Shakespeare


    "Meu reino por uma ceroula!!! "


À moda Dráuzio Varela:


    " Ao perceber na fila de embarque o cidadão à frente, notei certa obesidade mediana na região central. Se tivesse me sentado ao seu lado durante o vôo, recomendaria um regime, vexame  que me foi poupado pelos agentes da PF de plantão no aeroporto. Cuidado portanto, nem toda morbidez é obesidade"


À moda Neruda:


    "Cem mil dólares
 
    e uma cueca desesperada"

Oração de Natal com Retrospectiva 2006 (Luiz Celso Pinto)



Pelo projeto político do deputado Clodovil
Pelo "espetáculo do crescimento" que até hoje ninguém viu
Pelas explicações sucintas do ministro Gilberto Gil
Senhor, tende piedade de nós

Pelo jeitinho brejeiro da nossa juíza
Pelo perigo constante quando Lula improvisa
Pelas toneladas de botox da Dona Marisa
Senhor, tende piedade de nós

Pelo Marcos Valério e o Banco Rural
Pela casa de praia do Sérgio Cabral
Pelo dia em que Lula usará o plural
Senhor, tende piedade de nós

Pelo nosso Delúbio e Valdomiro Diniz
Pelo "nunca antes nesse País"
Pelo povo brasileiro que acabou pedindo bis
Senhor, tende piedade de nós

Pela Cicarelli na praia namorando sem vergonha
Pela Dilma Rousseff sempre tão risonha
Pelo Gabeira que jurou que não fuma mais maconha
Senhor, tende piedade de nós

Pela importante missão do astronauta brasileiro
Pelos tempos que Lorenzetti era só marca de chuveiro
Pelo Freud que "não explica" a origem do dinheiro
Senhor, tende piedade de nós

Pelo casal Garotinho e sua cria
Pelos pijamas de seda do "nosso guia"
Pela desculpa de que "o presidente não sabia"
Senhor, tende piedade de nós

Pela jogada milionária do Lulinha com a Telemar
Pelo espírito pacato e conciliador do Itamar
Pelo dia em que finalmente Dona Marisa vai falar
Senhor, tende piedade de nós

Pela "queima do arquivo" Celso Daniel
Pela compra do dossiê no quarto de hotel
Pelos hermanos compañeros Evo, Chaves e Fidel
Senhor, tende piedade de nós

Pelas opiniões do prefeito César Maia
Pela turma de Ribeirão que caía na gandaia
Pela primeira dama catando conchinha na praia
Senhor, tende piedade de nós

Pelo escândalo na compra de ambulâncias da Planam
Pelos aplausos "roubados" do Kofi Annan
Pelo lindo amor do "sapo barbudo" por sua "rã"
Senhor, tende piedade de nós

Pela Heloisa Helena nua em pêlo
Pela Jandira Feghali e seu cabelo
Pelo charme irresistível do Aldo Rebelo
Senhor, tende piedade de nós

Pela greve de fome que engordou o Garotinho
Pela Denise Frossard de colar e terninho
Pelas aulas de subtração do professor Luizinho
Senhor, tende piedade de nós

Pela volta triunfal do "caçador de marajás"
Pelo Duda Mendonça e os paraísos fiscais
Pelo Galvão Bueno que ninguém agüenta mais
Senhor, tende piedade de nós

Pela eterna farra dos nossos banqueiros
Pela quebra do sigilo do pobre caseiro
Pelo Jader Barbalho que virou "conselheiro"
Senhor, tende piedade de nós

Pela máfia dos "vampiros" e "sanguessugas"
Pelas malas de dinheiro do Suassuna
Pelo Lula na praia com sua sunga
Senhor, tende piedade de nós

Pelos "meninos aloprados" envolvidos na lambança
Pelo plenário do Congresso que virou pista de dança
Pelo compadre Okamotto que empresta sem cobrança
Senhor, tende piedade de nós

Pela família Maluf e suas contas secretas
Pelo dólar na cueca e pela máfia da Loteca
Pela mãe do presidente que nasceu analfabeta
Senhor, tende piedade de nós

Pela invejável cultura da Adriana Galisteu
Pelo "picolé de xuxu" que esquentou e derreteu
Pela infinita bondade do comandante Zé Dirceu
Senhor, tende piedade de nós

Pela eterna desculpa da "herança maldita"
Pelo "chefe" abusar da birita
Pelo novo penteado da companheira Benedita
Senhor, tende piedade de nós

Pela refinaria brasileira que hoje é boliviana
Pelo "compañero" Evo Morales que nos deu uma banana
Pela mulher do presidente que virou italiana
Senhor, tende piedade de nós

Pelo MST e pela volta da Sudene
Pelo filho do prefeito e pelo neto do ACM
Pelo político brasileiro que coloca a mão na "m"
Senhor, tende piedade de nós

Pelo Ali Babá e sua quadrilha
Pelo Gushiken e sua cartilha
Pelo Zé Sarney e sua filha
Senhor, tende piedade de nós

Pelas balas perdidas na Linha Amarela
Pela conta bancária do bispo Crivella
Pela cafetina de Brasília e sua clientela
Senhor, tende piedade de nós

Pelo crescimento do PIB igual do Haití
Pelo Doutor Enéas e pela senhorita Suely
Pela décima plástica da Marta Suplicy
Senhor, tende piedade de nós

Por fim
Para que possamos festejar juntos os próximos natais
Senhor, dai-nos a paz

sexta-feira, 18 de abril de 2014

"O coração tem razões que a razão desconhece” texto adaptado do original de Max Shulman.



 

PEDRO: adolescente astuto, intelectual, perspicaz. Nele, a razão predomina sobre a emoção. Possuía fortes “razões” para namorar Vera, uma vez que a emoção, por si só, não o levaria a nada.

JOÃO: jovem alegre, agradável, mas de cabeça vazia; andava sempre junto de Vera, dando a entender possível namoro.

VERA: uma gatinha de 16 anos, sempre na moda e alegre.
 

 

Na hora do recreio, no pátio do colégio, Pedro aproxima-se de João e pergunta:


─ Por que você está triste, João? Está doente?


─ Não, cara, é que não tenho uma moto. Já pensou quantas garotas eu não conquistaria com uma 250 cilindradas?


─ Nenhuma amigo, nenhuma do porte estético de Vera. Se você tivesse uma moto, só conquistaria “patricinhas” ou “peruas”, pois as pessoas atraem pelo que são e não pelo que têm ─ respondeu Pedro.


─ Eu faria qualquer coisa para conseguir uma moto. Qualquer coisa!


Pedro sabia que João e Vera eram muito chegados e, por isso, perguntou:


─ João, você namora Vera?


─ Acho que ela é legal, mas não sei se isso poderia ser considerado namoro. Por quê?


Passado o mês de férias, julho, ambos retornaram ao colégio e continuaram a conversa:


─ Já conseguiu a moto, João?


─ Não, Pedro, não tenho dinheiro para comprá-la.


─ Pois eu tenho uma moto. Meu irmão mudou-se para os Estados Unidos e deixou-a pra mim. Como eu não gosto de moto...


─ Mas que legal, cara! Quando posso buscá-la?


─ Hoje mesmo, se quiser. Mas, para ficar com ela, terá que me dar suas coleções de livros e revistas.


─ Fechado, cara. Eu não leio mesmo...


─ Mas há uma condição: não me impeça de tentar conquistar a Vera.


─ Fechadíssimo, irmão!


Pedro, ajudado por João, marca um encontro com Vera na quadra de peteca do colégio. Fica decepcionado com a ignorância de Vera e decide ensinar-lhe lógica.


No encontro seguinte, Vera pergunta para Pedro:


─ Sobre o que conversaremos?


─ Lógica. Lógica é a ciência do pensamento. Para pensar corretamente, devemos antes considerar alguns erros comuns de raciocínio chamados sofismas ou falácias.


Primeiro, vamos examinar o sofisma chamado generalização não-qualificada. Por exemplo: “Leite é bom para saúde. Por isso, todos devem tomar leite”.


─ Eu concordo ─ disse ela, séria ─ Acho que leite é ótimo para todo mundo.


─ Vera, esse argumento é um sofisma. Quer ver? Se você tivesse alergia a leite, ele seria um veneno para sua saúde. E são muitas as pessoas que têm alergia a leite. Por isso, o correto seria dizer: “Leite geralmente é bom para saúde”. Entendeu?


─ Não. Mas continue falando.


─ O próximo sofisma é chamado generalização apressada. Preste atenção: “Você não sabe falar grego, eu não sei falar grego. João não sabe falar grego. Então, devo concluir que ninguém no colégio sabe falar grego”.


─ É mesmo? ─ perguntou Vera, surpresa. ─ Ninguém?


─ Esse é outro sofisma. A generalização foi feita de maneira muito apressada. A conclusão se baseou em exemplos insuficientes.


─ Ei, você conhece outros sofismas? É mais engraçado do que dançar!


─ Bem, então escute o sofisma chamado ignorância de causa: “Alexandre viu um gato preto antes de escorregar. Logo, ele escorregou porque viu um gato preto”.


─ Eu conheço um caso assim ─ disse ela ─ Bernadete viu um gato preto e logo depois o namorado dela teve um acidente de...


─ Mas Vera, esse também é um sofisma. Gatos não dão azar. Alexandre não escorregou simplesmente porque viu um gato preto. Se você culpar o gato, será acusada de ignorância de causa.


─ Nunca mais farei isso, prometo. Você ficou zangado?


─ Não, não fiquei.


─ Então fale mais sobre os sofismas.


─ Certo. Vamos tentar as premissas contraditórias.


─ Sim, vamos.


─ “Se Deus é capaz de fazer qualquer coisa, pode criar uma pedra tão pesada que Ele próprio não consiga carregar?”


─ Claro! ─ ela respondeu prontamente.


─ Mas, se Ele pode fazer qualquer coisa, também pode levantar a pedra...


─ É mesmo! Bem, então acho que Ele não pode fazer a pedra.


─ Mas Ele pode fazer tudo!


Ela balançou a cabeça:


─ Eu estou toda confusa!


─ Claro que está. Sabe, quando uma das premissas de um argumento contradiz a outra, não pode haver argumento.


Pedro consultou o relógio e disse que era melhor parar por ali. Recomeçariam no dia seguinte.


─ Hoje nosso primeiro sofisma chama-se por misericórdia. Ouça: “Um homem se candidatou a um emprego. Quando o patrão perguntou sobre as suas qualificações, ele respondeu que tinha filhos, que a mulher era aleijada, as crianças não tinham o que comer, nenhuma roupa para vestir, nenhuma cama, nenhum cobertor e o inverno estava chegando”.


Uma lágrima rolou pelo rosto de Vera:


─ Oh, isso é horrível!


─ Sim, é horrível – concordou Pedro – mas não é argumento. O homem apelou para a misericórdia e a piedade do patrão. Usou o sofisma por misericórdia. Entendeu?


─ Você tem um lenço? ─ choramingou ela.


─ Agora vamos discutir falsa analogia. Por exemplo: “Deveria ser permitido aos estudantes consultar livros durante as provas. Afinal de contas, cirurgiões têm raios X para guiá-los durante as operações; engenheiros usam plantas quando vão construir casas.” Então, por que os estudantes não podem consultar livros?


─ Puxa, essa é a idéia mais genial que ouvi nos últimos anos!


─ Vera, o argumento está errado. Médicos e engenheiros não estão fazendo provas para saber quanto aprenderam, mas os estudantes estão. As situações são completamente diferentes, e por isso o argumento não tem valor.


─ Eu ainda acho que é uma boa idéia.


─ Quer conhecer um sofisma chamado hipótese contrária ao fato?


─ Isso soa delicioso!


─ Escute: “Se madame Curie não tivesse deixado uma chapa fotográfica numa gaveta com um pedaço de uramita, o mundo hoje não conheceria nada sobre o rádio.”


─ Claro! Você viu o que a televisão disse sobre isso? Foi incrível!


─ Se você esquecesse a televisão por um momento, eu mostraria que essa afirmação é um sofisma. Talvez madame Curie não tivesse feito sua descoberta. Talvez muita coisa pudesse ter acontecido. O certo, porém, é que não se pode partir de uma hipótese que não é verdadeira e daí querer que ela sustente conclusões.


Pedro, já sem esperança de que Vera pudesse pensar logicamente, resolveu dar-lhe a última chance:


─ O próximo sofisma chama-se envenenando o poço – disse, com ar de frustrado.


─ Que engraçadinho!


─ “Dois homens estão prestes a iniciar um debate. O primeiro levanta-se e diz: ‘meu adversário é um grande mentiroso. Não se pode acreditar no que ele diz’...” Agora pense, pelo amor de Deus. Pense firmemente. O que está errado?


─ Não é justo. Quem vai acreditar no segundo homem se o primeiro o chama de mentiroso antes mesmo que ele comece a falar?


─ Certo – gritou Pedro,vibrando de alegria. – 100% certo! Não é justo. O primeiro homem “envenenou o poço” antes que alguém pudesse beber a água! Vera, estou orgulhoso de você!


─ Oh, obrigada!


─ Agora, vejamos o petição de princípio. Por exemplo: “O cigarro prejudica a saúde porque faz mal ao organismo”.


─ É claro que a afirmativa é infantil. É como se dissesse: “prejudica porque prejudica”. Não explica nada.


─ Vera, você é um gênio. Esse sofisma toma como verdade demonstrada justamente aquilo que está em discussão. Veja, minha querida, as coisas não são tão difíceis. Tudo o que você deve fazer é se concentrar, pensar, examinar, avaliar. Bem vamos rever tudo o que aprendemos.


─ Está bem.


Cinco dias depois, Vera sabia tudo sobre lógica. Pedro estava orgulhoso, pois ele, e só ele, ensinara-a a pensar corretamente. Agora sim, ela era digna de seu amor.


Assim, ele decidiu revelar seus sentimentos.


─ Vera, hoje não vamos mais conversar sobre sofismas.


─ Oh, que pena!


─ Minha querida, nós já passamos cinco dias juntos. Está claro que estamos bem entrosados.


─ “Generalização apressada” – ela disse.


─ Oh, desculpe!


─ Generalização apressada – repetiu ela. – Como você pode dizer que estamos bem entrosados baseado em apenas cinco encontros?


─ Minha querida – falou Pedro, acariciando-lhe as mãos. – Cinco encontros são suficientes. Afinal de contas, você não precisa comer todo o bolo para saber se ele é bom.


─ “Falsa analogia” – disparou ela. – Não sou bolo, sou uma moça.


Aí, Pedro resolveu mudar de tática.


─ Vera, eu te amo. Você é o mundo para mim. Por favor, meu amor, diga que vai me namorar firme. Porque, do contrário, minha vida não terá sentido. Eu definharei. Vou me recusar a comer.


─ “Por misericórdia” – ela acusou.


─ Bem, Vera – disse Pedro, forçando um sorriso –, você aprendeu mesmo os sofismas.


─ É, aprendi.


─ E quem os ensinou?


─ Você.


─ Está certo. Então, você me deve alguma coisa, não deve? Se eu não a procurasse, você nunca teria aprendido nada sobre sofismas.


─ “Hipótese contrária ao fato”.


─ Vera, você não deve tomar tudo ao pé da letra! Sabe que as coisas que aprendeu na escola não têm nada a ver com a vida.


─ “Generalização não-qualificada”.


Pedro perdeu a paciência.


─ Escute, você vai ou não vai ser minha namorada?


─ Não vou.


─ Por que não?


─ Porque esta manhã prometi a João que seria a namorada dele.


─ Aquele rato! – gritou Pedro, chutando as flores do jardim. – Você não pode namorar esse cara, Vera. É um mentiroso. Um chato. Um rato!


─ “Envenenando o poço” – disse Vera. – E pare de gritar. Acho que gritar também é um sofisma.


Com um tremendo esforço, Pedro baixou a voz, controlou-se e disse:


─ Está bem. Vamos analisar esse caso logicamente. Como você poderia escolher o João? Olhe pra mim: um aluno brilhante, um tremendo intelectual, bonito, um cara com o futuro garantido. Olhe para o João: um cara-de-pau, vazio, um vagabundo. Pode me dar uma razão lógica para ficar com ele?


─ Claro que posso. Ele tem uma moto – respondeu Vera, correndo para montar na garupa da motocicleta de João.


Pedro, com profunda tristeza, gritou com raiva para que Vera pudesse ouvir:


─ O amor é um sofisma porque amar é sofismar!


─ “Petição de principio” – berrou Vera, agarrada à cintura de João, na moto que arrancava velozmente.

 
 

Texto adaptado do original de Max Shulman. “O amor é uma falácia”, in As calcinhas cor de rosa do capitão e outros contos humorísticos, p. 62-90 – extraído do livro Pensando melhor: iniciação ao filosofar, de Angélica Sátiro e Ana Míriam Wuensch. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 78-83.


"Carta de Despedida" de Gabriel Garcia Marquez

“Se, por um instante,
Deus se esquecesse de que sou uma marionete de trapo
e me presenteasse com um pedaço de vida,
possivelmente não diria tudo o que penso, mas, certamente pensaria tudo o que digo.
Daria valor às coisas, não pelo o que valem, mas pelo que significam.
Dormiria pouco, sonharia mais, pois sei que a cada minuto que fechamos os olhos,
perdemos sessenta segundos de luz.
Andaria quando os demais parassem,
acordaria quando os outros dormem.
Escutaria quando os outros falassem
e gozaria um bom sorvete de chocolate.
Se Deus me presenteasse com um pedaço
de vida vestiria simplesmente, me jogaria de bruços no solo, deixando
a descoberto não apenas meu corpo,como minha alma.
Deus meu, se eu tivesse um coração,
escreveria meu ódio sobre o gelo e esperaria que o sol saisse.
Pintaria com um sonho de Van Gogh
sobre estrelas um poema de Mário Benedetti
e uma canção de Serrat seria a serenata que ofereceria à Lua.
Regaria as rosas com minhas lágrimas
para sentir a dor dos espinhos e o
encarnado beijo de suas pétalas.
Deus meu, se eu tivesse um pedaço de vida!…
Não deixaria passar um só dia sem
dizer às gentes- te amo, te amo.
Convenceria cada mulher e cada homem
que são os meus favoritos e viveria enamorado do amor.
Aos homens, lhes provaria como estão
enganados ao pensar que deixam de se apaixonar quando envelhecem,
sem saber que envelhecem quando deixam de se apaixonar.
A uma criança, lhe daria asas, mas deixaria que aprendesse a voar sozinha.
Aos velhos ensinaria que a morte não chega com a velhice, mas com o esquecimento.
Tantas coisas aprendí com vocês, os homens…
Aprendí que todo mundo quer viver no
cimo da montanha, sem saber que a verdadeira felicidade está na forma de subir a escarpa.
Aprendí que quando um recém-nascido aperta com sua pequena mão pela
primeira vez o dedo do pai, o tem prisioneiro para sempre.
Aprendí que um homem só tem o direito de olhar um outro de cima para baixo para ajudá-lo a levantar-se.
São tantas as coisas que pude aprender
com vocês, mas,finalmente não poderão
servir muito porque quando me olharem
dentro dessa maleta, infelizmente estarei morrendo”

Gabriel Garcia Marquez