COUTINHO, Luciano G. & BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Desenvolvimento e estabilização sob finanças globalizadas. Campinas, IE/Unicamp, Economia e Sociedade, n. 7, 1996, p. 129-154.
O Objetivo do presente artigo é demonstrar que nem o desenvolvimento nem a estabilização estão automaticamente assegurados pela globalização. Esta, ao contrário, tende a submeter as economias em desenvolvimento a novas armadilhas e constrangimentos macroeconômicos que poderão custar longos anos de sacrifício e estagnação. Empreendeu-se, também, neste artigo uma reflexão sobre o novo paradigma tecnológico e organizacional da indústria, o que exige novas capacitações e maior poder de coordenação por parte do Estado, revestindo as políticas de desenvolvimento de novas e complexas exigência e condições.
As teorias do desenvolvimento econômico sempre tomaram por suposto a necessidade de um papel ativo do Estado, tudo se conformava, coerentemente, à ordem internacional estabelecida pelo regime Bretton Woods.
Em contraste, nos anos 1990, a hegemonia do pensamento liberal instituiu um novo paradigma, em que o predomínio das relações de mercado minimizaria incisivamente o papel que deveria ser empenhado pelo Estado. Sob a égide da globalização a política de desenvolvimento se reduziria à criação das condições propícias para atrair investidores, lubrificando-se ao máximo a liberdade privada de acumulação. No entanto, como se verá adiante, sem um Estado capaz de preservar minimamente um espaço de autonomia para a sua gestão macroeconômica, à submissão às finanças globalizadas pode ser traiçoeiramente deletéria para o desenvolvimento.
É conhecida a influência dos estoques de ativos financeiros (e respectivos mercados) sobre as políticas econômicas e sobre o funcionamento das economias contemporâneas. A novidade é a participação crescente das famílias como ofertantes de fundos e detentoras de papéis, sendo que na outra ponta estão os Tesouros Nacionais, grandes empresas e bancos. A transformação das poupanças em créditos bancários cedeu lugar à finança direta, mobilizada através dos mercados de ativos. Estes que possuem características como: profundidade, liquidez, mobilidade e volatividade. Esta última que, associada às demais características, suscitou desenvolvimento de instrumentos de hedge, chamados derivativos, que buscam neutralizar os riscos de perda de rendimento e/ou de capital.
É ingenuidade supor que este mercado atende aos requisitos de eficiência, no sentido de não haver estratégias “ganhadoras” acima da média, derivadas das assimetrias de informação e de Poder. E é um truísmo afirmar que estes mercados são intrinsecamente especulativos. O problema é que nestes mercados dominados pela “lógica dos estoques” a especulação não é estabilizadora nem autocorretiva, porquanto a coexistência entre incerteza, assimetria e mimetismo frequentemente dá origem a processos auto-referenciais, instáveis e desgarrados dos “fundamentos”.
Desde a afirmação de sua supremacia, em meados dos anos 1980, os mercados financeiros foram palco de uma sucessão de episódios críticos. Entre eles o crash das bolsas de valores de 1987, o crash dos mercados imobiliários em 1989, o colapso da Bolsa de Tóquio em janeiro de 1990, os ataques especulativos às moedas fracas do SME em 1992 e 1993, a crise no mercado americano de bônus em meados de 1994, a crise mexicana de dezembro do mesmo ano, a forte desvalorização do dólar em abril/junho de 1995 e a instabilidade da Bolsa nova-iorquina em 1996. Em suma, mais do que em qualquer outro período da histórica econômica, as políticas monetárias estão severamente constrangidas pelas tensões e desequilíbrios que nascem dos mercados financeiros.
As autoridades monetárias passaram a temer a progressiva severidade e generalização dos efeitos perversos das reversões cíclicas engendradas nos mercados financeiros. Desequilíbrios estes que permanecem encobertos na etapa altista do ciclo, neste há valorizações que estimulam o sobreendividamente dos agentes, impulsionando o consumo, o investimento produtivo e a própria valorização fictícia da riqueza financeira.
Aos primeiros sinais de aquecimento no nível de atividade e diante da percepção de que os ativos estão sobrevalorizados e as taxas de juros de longo prazo estão baixas (diante da inflação projetada) os agentes mais ágeis atiram primeiro e precipitam um sell off provocando uma espiral baixista dos preços dos títulos e, consequentemente, as taxas de juros longas se elevam abruptamente.
A deflação dos preços nos mercados da riqueza tende sempre a desvelar a existência de situações de fragilidade financeira e, em muitos casos, de patrimônios líquidos negativos ou prestes a se tornarem negativos. Isso significa que são muito poderosas as forças que tendem a empurrar a economia para uma trajetória depressiva e inflacionária.
As políticas monetárias nos países centrais movem-se, portanto, em um corredor estreito entre a obrigação de prevenir as deflações agudas, através de repetidas intervenções de última instância (sempre acompanhadas de risco moral) e a necessidade de regular a estabilidade da economia.
As autoridades preferiram até agora, nesse contexto, apostar em uma “autocorreção” endógena e moderada do ciclo financeiro recente, temendo que uma nova elevação das taxas, ainda que moderada, possa determinar alterações mais drásticas nas expectativas, capazes de produzir não só uma “correção de preços” dos ativos, mais forte do que a desejada, mas também desastres de grandes proporções nos mercados emergentes.
As políticas monetárias ainda sofrem com a coexistência entre mercados financeiros globalizados e um sistema internacional plurimonetário, com taxas flutuantes de câmbio entre as três principais moedas, o que não seria tão problemático se o país detentor da moeda central (aquela em que são denominados a maioria dos contratos e que funciona como meio de pagamento preferencial no conjunto das transações) não fosse devedor líquido e cronicamente deficitário em conta corrente.
Nos anos 1980 houve a destruição dos padrões monetários nacionais na América Latina. A ruptura dos fluxos de financiamento externo, no início da década, desencadeou uma severa crise cambial, que se desdobrou em grave desestruturação fiscal e na progressiva perda da capacidade de gestão monetária. Nesse contexto, o BACEN estava constrangido a garantir liquidez para a massa de riqueza financeira de curtíssimo prazo, sob pena de desencadear uma fuga para os bens e ativos reais, provocando a erupção da hiperinflação aberta. Podemos dizer que esta crise, em boa parte, decorreu das políticas de ajustamento recomendadas pelos organismos multilaterais. A combinação entre tentativas de desvalorização da taxa real de câmbio e austeridade fiscal/monetária revelou-se inconsistente, numa situação que o Estado carregava estoques muito elevados da dívida em moeda estrangeira e só tinha condições de financiar a transferência de recursos para o exterior através da ampliação do endividamento externo de curto-prazo. A partir dai as autoridades começaram a buscar alternativas heterodoxas, tentando desmontar os abrangentes sistemas de indexação: programas que procuraram fixar âncoras nominais, através do congelamento de preços e da taxa de câmbio.
Nos anos 1990, com a fadiga generalizada da alternância entre políticas convencionais e heterodoxas, acontece uma notável reversão dos fluxos de capitais em favor dos mercados emergentes associada a consolidação de uma nova proposta “reformista” por parte dos organismos multilaterais codificada por John Williamson sob a epígrafe do “Consenso de Washington” cujos pontos principais são: austeridade fiscal, abertura comercial, liberalização cambial e financeira, desregulamentação, privatização e redução do papel do Estado.
Embora a reversão do fluxo de capitais tenha sido o fator crucial do sucesso das novas experiências de estabilização, as honrarias foram atribuídas às virtudes das reformas “estruturais” advogadas pelo Consenso, o que suscitou numa reavaliação radical do desenvolvimentismo e das políticas de substituição de importações, que passou a ser a “origem de todos os males”: o fechamento da economia, a má alocação dos recursos, a baixa competitividade da indústria e, last but not least, a desordem fiscal e monetária que conduziu a hiperinflação. É importante salientar que boa parte dos críticos do Consenso de Washington já havia apontado a exaustão do chamado modelo de substituição de importações. O segundo choque do petróleo e o choque dos juros promovido por Paul Volker o final de 1979 decretaram a obsolescência da agenda reformista dos anos 1970. Se uma lição pode ser extraída da chamada “década perdida”, ela tem a ver com as conseqüências funestas de se tornar a economia excessivamente dependente do financiamento externo.
O traço comum dos programas “heterodoxos de segunda geração” foi a utilização do compromisso de manter a taxa de câmbio nominal como âncora do processo de desinflação. Sendo que o fator decisivo para a transformação de doadores de “poupança” para receptores de recursos financeiros foi a deflação da riqueza mobiliária e imobiliária observada já no final de 1989, nos mercados globalizados. Nesse contexto, os países periféricos (até então submetidos às condições de ajustamento impostas pela crise da dívida) foram capturados pela globalização, executando os programas de estabilização de acordo com as normas dos mercados financeiros liberalizados: A regra básica das estabilizações com abertura financeira é a criação de uma oferta de ativos atraentes que possam ser acampados pelo movimento de globalização: títulos da dívida pública, ações de empresas em processo de privatização, bônus e papéis comerciais de empresas e bancos de boa reputação e, posteriormente, ações depreciadas de empresas privadas, especialmente aquelas mais afetadas pela abertura econômica e pela valorização cambial.
Haja vista que, a estabilização conquistada nestas condições coloca-e sob ameaça permanente de ruptura. E, como era de se esperar, a rápida acumulação de reservas provocaram um crescimento acelerado da dívida pública ampliando a fragilidade financeira, a despeito da elevada taxa de crescimento do produto e da receita de impostos entre setembro de 1994 e abril/maio de 1995, resultante do fim do “imposto inflacionário” que incidia sobre a massa de salários e demais rendimentos perfeitamente indexados. O desequilíbrio fiscal tornou-se mais profundo quando o governo (acossado pelo déficit da balança comercial projetado para 1995) tomou severas medidas de restrição ao crédito, provocando uma rápida desaceleração do crescimento do produto e renda. (o resultado não poderia ser outro, senão o surgimento de níveis de inadimplência muito acima da média histórica, atingindo em cheio o sistema bancário, já fragilizada pela perda das receitas inflacionárias).
Além destes problemas, a combinação entre câmbio e juros pode provocar também várias distorções alocativas: disrupção das cadeias produtivas e a distribuição setorial do investimento. Além disso, este modelo de estabilização vem acompanhado de um crescimento bastante rápido do endividamento externo da economia que, ao contrário do endividamento desenvolvimentista, esta nova etapa aumenta em muito a vulnerabilidade da economia a um choque externo.
Os quatro supostos (estabilidade, abertura, privatização, liberação cambial) sugerida pela estratégia do Consenso de Washington prediziam que seriam eliminadas as distorções acumuladas durante o processo de substituição de importações e aumentaria significativamente a “competitividade” das economias emergentes. A desaparição de setores, a redução do valor agregado nas cadeias produtivas e o enxugamento das empresas são considerados benéficos e necessários para tornar mais eficientes os sistemas industriais. Desse modo seriam elevados os ganhos de produtividade, a ponto de compensar com sobras as desvantagens criadas pela valorização da taxa de câmbio. Por outro lado, o investimento estrangeiro desempenharia um papel chave como veículo do progresso tecnológico e organizacional, essa transformação teria uma forte inclinação exportadora.
Essa visão otimista parte de constatações verdadeiras, mas chega a conclusões discutíveis: a flexibilização das importações não é suficiente como fator de atração do investimento externo “inovador”, na ausência de um regime favorável à exportação (era necessário uma abertura comercial gradualista, preservando-se uma taxa de câmbio estimulante às exportações); o governo Collor pecou em desmantelar o sistema de crédito às exportações quando deveria ter aperfeiçoado e por ter antecipado imprudentemente o último estágio do cronograma de redução das tarifas aduaneiras (isso conjuminado com os acordos de Ouro Preto e à posterior apreciação nominal do câmbio criaram um fenômeno prodigioso da abertura com viés antiexportador).
Para justificar as autoridades econômicas têm recorrido a malabarismos teóricos e estatísticos a respeito dos ganhos de produtividade propiciados pela abertura. (há uma identificação simplória entre ganhos de produtividade e competitividade internacional).
Há falhas tanto do mercado quanto da ação governamental. A ideologização do falso dilema Estado versus Mercado omite, de partida, o fato óbvio de que a existência e o bom funcionamento dos mercados requerem “juridificação” (criação de normas e instituições). É bastante reconhecida a necessidade de intervenção em processos que envolvam externalidades positivas e negativas. Evidentemente, estas falhas não sobrevivem nos modelos de equilíbrio geral, nenhum dos teóricos do equilíbrio geral aceitaria deduções de políticas (ou a ausência delas) a partir deste modelo abstrato. Apesar das reiteradas advertências, os liberais mais radicais insistem em extrair ensinamentos normativos destas construções teóricas.
A demonstração da inevitabilidade de uma inserção passiva das economias no chamado processo de globalização é um dos objetivos do pensamento dominante, no entanto, é conveniente relembrar que este processo foi resultado de políticas que buscaram enfrentar a desarticulação de bem sucedido arranjo capitalista do pós-guerra. A inserção dos países neste processo, longe de ter sido homogênea, foi, ao contrário, hierarquizada e assimétrica.
O que é decisivo para a autonomia das políticas nacionais é a forma e o grau de dependência em relação aos mercados financeira sujeitos à instabilidade das expectativas. Além disso, o grau de “inserção internacional” dos países corresponde a padrões muito distintos. Enquanto uns são protagonistas ativos, mantendo taxas de crescimento de suas exportações acima da média mundial, outros ajustam-se passivamente, perdendo participação nos mercados.
“Essa é a lição que nos oferece a decantada globalização: os países que buscaram preservar um espaço para suas políticas macroeconômicas são capazes de sustentar taxas reais de juros baixas, administrar taxas de câmbio estimulantes, promover o avanço industrial e tecnológico, garantindo assim o robustecimento de seus grupos nacionais privados. A globalização, ao contrário do que predica o paradigma liberal, exigiria maior capacitação e maior poder de coordenação dos estados nacionais para engendrar condições favoráveis à competitividade, ao financiamento e à sustentabilidade dos processos de acumulação de capital com inovação tecnológica.”
Leandro Moreira da Luz é aluno da disciplina Economia Brasileira no Programa de Pós-Graduação em Ciências Econômicas da Universidade Estadual de Maringá – período 2/2011.


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